O homem-cachorro



Devido a uma imagem aparentemente bizarra, que me tocou profundamente, acabei por acessar o site de sua origem, apontado por um amigo. Foi uma daquelas olhadelas internáuticas, noturno-vespertinas, no lusco-fusco, quando o dia anuncia acabar e, para evitarmos o incômodo de não ser nem noite nem tarde, procuramos uma distração. A imagem em questão era a de um homem-cachorro. Nesse site, primeiramente vi os anúncios de que o cachorro foi eutanasiado, seguindo os mais avançados e respeitosos procedimentos da cirurgia canina. Depois pude observar imagens da cirurgia em si, que consistia de algumas fotos colocadas em esquema sequencial, mostrando o passo a passo do transplante (de partes do cachorro morto ao ser humano interessado nessas partes; um artista, fazendo arte, literalmente, em duplo sentido). 

Deixando de lado a discussão se ele, o homem-cachorro, deve ser louco ou ser preso, como apontava meu amigo, os comentários contidos no site revelaram coisas tão bizarras quanto a própria cirurgia que se apresenta aos expectadores. É impressionante, por exemplo, a quantidade de comentários homofóbicos, do tipo que associa “ser bizarro” a “ser viado”. Impressiona também a quantidade de violência que as pessoas adotariam caso encontrassem o canino-homem nas ruas. Curioso que, nesse caso, as atrocidades cotidianas aos animais não são questionadas, apenas a do homem cachorro, que, por sua vez, são recebidas com tamanha violência. Minhas senhoras, ressalto as ameaças de morte a ele referidas, e até a proposta de implante de um pênis em seu ânus. Fosse a foto de um vaqueiro com uma cabeça de boi substituindo a sua dentro de um curral, soaria como algo trivial. Comer vinte corações de frango num espeto só (daqueles que se vendem nas esquinas), igualmente, é pouco questionado.

No caso de nosso homem cachorro, a arte não está precisamente na imagem do canino-humano em si, mas no efeito que ela causa nas pessoas. De repulsa? Não é só isso... No caso, a imagem revelou (algo expresso pelos comentários) muita, muitíssima, incompreensão, raiva, atitudes naturalizadas em nossa sociedade (tão bizarras quanto o transplante em questão, embora bizarrice seja algo bem relativo), a exemplo do espetinho de frango que me veio à mente. Trata-se, minhas senhoras, da mesma incompreensão que ocorre cotidianamente às minorias, aos índios, aos gays (muito longe de estes últimos constituírem minorias). Não quero com isso dizer que o artista-cachorro é um incompreendido, mas, sobretudo, atestar que há muita gente por aí portando incompreensão, mordendo a própria língua e dando tiro no pé a torto à direita.

Do ponto de vista artístico, minhas senhoras, o artista-cachorro foi brilhante, tomando como premissa de que sua arte foi minuciosamente pensada. E se pensar minuciosamente o caracteriza como psicobizarropata, então, nesse sentido, ele o é. Sua imagem cachorrobizarropata nos leva a refletir sobre questões de bem-estar animal, naturalização da dor e do uso da imagem alheia (no caso dos animais, mas seria fácil extrapolar para os humanos), incompreensões múltiplas, exclusão de minorias, violência contida, etc. Que síntese! Por que um ser humano pode quebrar a cara de outro por ele ter pego as orelhinhas de um cachorro eutanasiado e tê-las amarrado junto à sua? Não esqueçamos, isso ocorre com os ratos, aos montes nos laboratórios. Essa seria uma prerrogativa da ciência? Por que o transplante do homem-cachorro poderia justificar que outro ser o amarre em uma camisa de força e o embriague de remédios? Há mesmo muita diferença entre o canino-louco e a leitoa à pururuca servida com uma maça na boca no almoço de domingo? Humilhar publicamente o homem cachorro, como aconteceu com as publicações dos comentários a seu respeito, é o mesmo que dizer, ora pois, "o fétido almoço herege de domingo servido à luz de diabinhos retardados que correm ao redor do tabuleiro de madeira". Linchemos os hediondos que usurpam a liberdade de cavalos (refiro-me àqueles de quatro patas mesmo) por muitos anos e os soltam quando velhos para padecerem de fome e solidão nas ruas? Seria essa a vontade das senhoras que estão aqui a ler supostos devaneios?

Percebam, senhoras, que nosso artista-cachorro, louco-bizarro, viado-sem-noção, foi brilhante, certeiro! Há quem diga que ele chegou a ganhar simpatia com aquele focinho avantajado, esquartejado. Foi uma fantasia canina que mostrou às pessoas quem elas são, sem acusá-las, como um espelho o faz tão duramente aos balzaquianos.

Gilberto L.

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