Cidade pará-doxo


Paradoxo é clichê? Clichesão? Mas não é à toa. Paradoxos constituem as nossas vidas e talvez seja por isso que se diga outro conhecido clichê: o homem é um ser contraditório. A cidade onde vivo é assim também, paradoxal, e as demais, do porvir, assim serão? Quiçá! Fico na dúvida de como começar a falar da minha cidade. Ela é conhecida, como muitas outras de nosso gigante Brasil, pelas deficiências no serviço público. É, é isso mesmo, eu já dei ao entender que estava falando de clichês, oras. Mas voltemos à minha cidade... Fazendo um recorte temporal, do dia de hoje, pode-se provar uma mostra dessas deficiências. Hoje, na câmara legislativa, discute-se a privatização dos serviços de abastecimento de água. Privatizá-los, aqui, ao contrário do que se imagine, tem grande apelo popular, sob o comprovado argumento de que o poder público local é incapaz de garanti-lo. Será? Veremos... O fato é que vários bairros não recebem água todos os dias. Água à noite, nem pensar. Água pela manhã, no entanto, é garantida em vários bairros, particularmente naqueles lares de moradores mais desmemoriados, que esquecem as torneiras abertas desde a noite anterior. Assim é. Você está em casa, à noite, lavando louça, a água acaba, você para de lavar, esquece a torneira aberta, às seis da manhã ela volta, você acorda: um lago. Dura realidade. Mas deixemos a água de lado e sigamos adiante no dito recorte. Hoje é sexta-feira, e ainda noticia-se, em rede local e nacional, o fato marcante do último feriado. Foi a ausência de médicos nos hospitais públicos durante o feriado de finados. Calamitoso o fato ocorrido de que as pessoas que chegavam tinham que voltar, independente do tipo de problema – de febre a crânio rachado. Devo dizer, vou me ater apenas ao recorte temporal. Assim, uma mulher presa em jaula masculina por 15 dias, como aconteceu há alguns meses, sugere muitas coisas, mas não pertence a este recorte. Mas, um conjunto de hospitais sem médicos no final de semana confirma – e não apenas sugere – a falência de um setor. É mais amplo, e é aí onde eu queria chegar cara leitora. Estou tentando colocar, neste recorte, evidências de várias falências. Pancadarias na câmara legislativa pela privatização do abastecimento são evidências desse mesmo tipo. Não? Adiante. Ontem fui dar uma volta no bosque e fiquei transtornado no momento em que vi aparelhos de ginástica absurdamente lotados. O que isso significa? Significa que, desde que foram instalados, há seis dias, foram percebidos de imediato, sem nenhuma divulgação. Mas o mais embaixo do buraco é que as pessoas estão sedentas de espaços e de lazer diferentes. Aqui, acredite, praticamente não existem parques, e as praças que há estão sempre causticamente lotadas. Adiante. Ônibus na cidade onde vivo há muitos: todos sujos, mal conservados, velhos. É comum os motoristas não pararem quando são solicitados. Hoje está acontecendo isso, vejo da minha janela. Oras, então está no recorte, não está? Comum também é ter que pegar apenas o terceiro ônibus, pois os dois primeiros não pararam. Mulher gostosa, com o perdão da palavra, [i]lógico, não é afetada. A impressão que fica é que existe uma autogestão do sistema como um todo e nele participam apenas os usuários e as empresas. Imaginou no que dá? Saiu na revista da semana, li hoje, os sem terra do MST invadiram uma fazenda próxima a Marabá e demoliram todas as construções lá presentes. Que isso quer dizer? Que mais uma vez esses pilantras marginais fazem sua bagunça ameaçadora? Não, que as propagandas enganosas continuam regendo a opinião pública. Nem investiguei se é mentira, mas é tudo bem semelhante às inúmeras ocasiões que investiguei e que era. Logo, tomemos como mentira. Trata-se de algo representativo? Responda a você mesmo. Ainda estou fiel ao meu recorte temporal: só vale o que burbura hoje. Não vou falar do prefeito com seu falso diploma, nem da governadora com seu programa de 1 bilhão de [mentiras]árvores, nem da polícia absolutamente corrupta, nem da educação paupérrima, nem do trânsito. Estas coisas aqui não estão em questão. Só vale o de hoje mesmo, o que eu posso ver. Bom, chega de denúncias, pois o que busco é o paradoxo e, para ser paradoxo tem que contrastar, não é isso? E é aí que reside o desafio. Já pensaram nisso? É aí que reside o desafio... Ponham-se no meu lugar. Viu? Paradoxo é assim fácil falar, eita clichesão arretado, vai explicar... E eu queria, era dizer do paradoxo. Como pode, como pode, deste contexto, emergirem coisas, assim, tão belas? E elas resistirem e continuarem [re]existindo. Pronto, lá vem o cara em busca de senso poético que justifique toda a merda colocada. Mas é isso, o contraste está em questão! Deste caos emergem cultura, sutilezas, tradições, posturas, modos de encarar o próprio caos. Estes, juntos, constituem os passos de uma dança, que é bela, sublime aos mais atentos. Seriam os passos do Heavy metal do senhor? Neste contraste pergunto: como pode tantos poetas e escritores conseguirem manter seu fôlego; como podem ainda manterem-se indignados, por tanto tempo? Como pode, em meio de tanta dominação de forças hegemônicas, existir um canal de TV tão diverso, regional e, acreditem, imparcial? Lógico, tantos belos passos, tanta beleza, mantém-se escorada em uma carapaça incessantemente autoprotetora, autovalorizadora. Seria a carapaça da ilusão? Talvez, mas uma ilusão constituinte, que garante a sobrevivência, logo, necessária. Pois, então... Como pode tanto chôro, carimbó e marujada? Isso é mais um clichê, você pode dizer, mas o mesmo poderia ser dito sobre os ensaios das quadrilhas noite adentro? É, saibam, esses ensaios ocupam ruas e ruas nas madrugadas de maio. Vou pular o clichesão do Círio de Nazaré, mas pergunto a vocês, o que faz haver uma programação de rádio tão boa? E artistas tão engajados? Que é que faz, diante do caos, pessoas cozinharem tão refinadamente, escolhendo os melhores temperos, daqueles de fazer virar os olhinhos? Pois é, vejo, não sei se vês companheira, uma lagartixa que, jogada no ácido, não sem dor, ensaia seu extasiante nado sincronizado. É paradoxo ou não? Ô horinha pra ensaiar...

Gilberto L.
 
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