A roda da praça


Certa vez fui à Praça da República, em Belém, para ver o que acontecia lá. Depois de muitas voltas pelas barraquinhas, acabei por parar em uma roda muito animada que me chamou a atenção. Energizada acho que era a palavra mais certa que animada. What ever... Meus olhos foram de súbito atraídos por uma tocadora de chocalhos, que tocava em contratempo, como que em transe. Ao centro da roda, um guri, que de tão maliciosamente dançava cortejando lá uma mulher, de guri pouco se lembrava. Ao fundo, além dos muitos, duas adolescentes com seus óculos maneiros, bem representavam o grupo das patricinhas. Aliás, o que tinha de representantes, só vendo e crendo. Mas a roda, cheia por fora, vazia por dentro naquele momento estava, aconchegando poucas timidezes. É isso mesmo timidezes: porque pra entrar na roda tem que ser tímido. E aí foi chegando um número maior de tímidos, à medida que a música com seus tambores, chocalhos e vozes ia apetecendo. A respeito, era Carimbó, e outras, vamos ver. Dos flertes de súbito percebi um surreal no miolo daquela roda; mucho loca como diriam meus sucessores. Não dei conta de tantas informações. Uma índia, com cara de índia, já meio senhora acertava os passos. Sua veste era intrigante: uma calça jeans da cintura a abaixo da púbis, cortada. De aí para baixo formava-se uma saia de belos retalhos. Na testa tinha um arco, de pedras e sementes que, com seus cabelos longos e rosto marcante lembravam a She-ra, a princesa do poder. Lembram dela? A irmã do He-man. Pois é, não consegui poupá-los de minha herança geracional. Mas, adiante... Para acompanhá-la entrou lá naquele miolo um homem, de idade semelhante, bermuda de surfista, tênis, meia, meio desengonçado. Mas combinaram, achei. Duas senhoras não puderam se conter, no sentido estrito da palavra, e adentraram à roda. Uma delas era assaz gorda; tirou as sandálias às pressas e tinha as unhas pintadas de vermelho, sufocadas pela gordura dos pés. Exprimia na face um prazer intenso que espremia seu suor. A outra senhora parecia uma crente, acho que viera da igreja à praça, mas não posso afirmar. Vestia uma camisa azul, de gola também azul listrada de branco, enfiada adentro de uma saia de branco impecável. Ao braço carregava uma bolsa preta, envernizada, que balançava em compasso rígido. E a música esquentava com o fogo destas incontinências, alimentado pelos semblantes tímidos e ousados dos que se propunham a dançar. “André, me sinto o máximo a cada dia que sou como você”. Essa era uma frase tatuada nas costas de uma jovem e bonita mulher, bem torneada, de gengiva protuberante. Outra feliz incontida. Ela estava sempre cortejada por um rapaz, também jovem, magro, forte e de olhar sugestivo. Na roda ele e ela eram os maiores, digo, os mais altos. Eram os mais brancos e faziam o cerimonial: eram o príncipe e a princesa eleitos, sem que se possa usar suas matizes de pele como ironia social. Na periferia disso tudo, atentos observadores, batedores de palmas, assobiadores e cantores se entreolhavam. Ah, e os músicos. Havia de todos os tipos e todos os lugares, liderados por um rasta de cabelos nas coxas, muito imponente. Ensaiados, mas diversos. De tão diversos, parece, sua ação e frenesi eram motivados pelos incontidos, pelos diversos incontidos. Chegaram duas bailarininhas que haviam se apresentado num palco perto dali. Também não se contiveram. Chegou um flautista, trêmulo e tímido, começou a tocar no microfone. Nada no início se ouvia, a não ser seu desconforto. Um cantor, carismático, com cara de cearense fez a ele o cerimonial necessário. Arranjou outro microfone, cantou junto, pediu ao coro para cantar a mesma melodia. E aí foi, o flautista se fez em êxtase. Todos se fizeram. A gorda, a crente, as bailarinas, os príncipes, o adolescente magro, o guri cortejador, o desengonçado, os descolados e muitos outros. E sendo muitos, assim tão variados, não podiam dançar uma coisa só. Dançaram carimbó, lundu, boi, tambor. Carimbó com matraca, boi com flauta, tambor com tudo. E o alimento era a timidez e o reflexo inevitável dos tambores que batiam. Horas a fio...

Gilberto L.

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