Eu e você achamos que diferenças de classe existem, muita gente acha. Entendo que muitos sustentem o contrário, mas eu sou desses que acha. Você não? Diferentes capacidades de comprar, de se locomover, de se comunicar, de aprender, de desfrutar... Lógico, as diferenças não são sempre iguais, ou homogêneas, mas elas existem. Suponho que tenham surgido de diferenças econômicas que outrora se estabeleceram, em um ciclo vicioso infernal. E da nossa natureza [des]humana também. Infernal porque, para dele se conseguir sair, é fundamental vender a alma ao diabo, quando não o corpo aos homens. Mas escrevo porque, uma vez havendo a famigerada diferença e, assim, existindo o “grupo dos de cima” e o “grupo dos de [re]baixo”, a qual destes seria melhor pertencer? Fico pensando... digamos que uma classe tal, de Fulanos, possa comprar mais que uma outra classe, de Beltranos. E que os Fulanos tenham mais platas, more monney, maior mobilidade diante das incertitudes da vida, mais conforto. Assumamos isto por enquanto, desconsiderando as imperfeições que porventura estejam aí imbricadas. Já a dos Beltranos, essa teria mais audácia, mais necessária-criatividade, menos aporrinhação mental – afinal não necessita manter o domínio da outra classe. Ficcionemos... As duas transitam, com diferentes passos e velocidades, ambas se entrelaçam e dependem uma da outra. Penso se isso seria um paradoxo: “sugar” a vida do que o sustenta. Um comensalismo? Um parasitismo? Nessa divagação, fico imaginando que, uma vez os Beltranos sendo conscientes de suas maiores capacidades (de platas), se assim o for, nessa sapiência-consciência reside um enorme constrangimento por parte dos Fulanos. Os Fulanos são mais ricos e os Beltranos mais pobres, e ambos têm consciência de suas posses e possibilidades e que, mais ainda, têm consciência dessas mesmas posses e possibilidades alheias, e mais, consciência da reciprocidade dessa consciência. Concluo que aí reside um forte constrangimento! Não acham? Ele existe para você? Querem um exemplo? Imaginem, Senhor Barriga vai ao supermercado, compra coisas que o Chaves – que, sendo o caixa, convenhamos, nunca fora chamado de Senhor Chaves – jamais pudera comprar, ambos sabem disso, quem fica constrangido? Senhor Barriga! O magnânimo caixa, o Chaves, de pseudo simpatia, de pseudo sorriso, de pseudo troco certo (ah, Senhor Barriga estava atento!), registra as compras com sua pseudo vontade e verdadeira agilidade... Seu Barriga? Confere a nota e o troco com o pseudo ar de que qualquer troco a menos o faria falta, de que as coisas andam caras e de que aquele é um momento único, já que, pseudo tendo pouca grana, há de pseudo sofrer com a referida compra. Mas Seu Barriga, nem tão no fundo assim, sabe que o Chaves sabe... que ele sabe de tudo, e que ele sabe que ele sabe que ele sabe! E na hora de erguer os braços para pegar as compras, e já desde a hora de passar o cartão e digitar a senha, recai inevitavelmente sobre Seu Barriga uma sensação aterradora, e ao mesmo tempo inacreditavelmente sutil: o constrangimento, opaco, da fila do supermercado. E da fila do açougue, e da fila da loja, e da fila do guichê para pagar o estacionamento, e das inúmeras filas. E Chaves, que quando adquirira o emprego, no início, ficara sempre constrangido – assim, de saber que era pobrezinho diante daqueles consumidores – agora não o fica mais. Lógico, esse não é o caso do Senhor Barriga. Entendem? Pergunto, seria este constrangimento o castigo para os Fulanos que pensam não ter que se preocupar com a questão social? Ou seria um castigo, maior ainda, para os Fulanos que se preocupam com a questão? Aí o castigo seria o martírio, agonizando sempre, sempre. Não sei, mas sei que constrangidos ficam todos esses Fulanos, e que esses, a maioria desses, não consegue uma relação mano a mano com os Beltranos. Consegue, a maioria? No, no. Bem, disse que escrevia para tentar esclarecer a dúvida sobre a qual grupo seria melhor pertencer, dado o factual constrangimento. Mas, subitamente, estou convencido de que não trarei resposta ou avanço algum. Você sim? Mas, glória, em compensação me surgiu uma posição, muito pessoal, sobre a possibilidade da própria natureza desumana dos homens ser uma das causadoras da diferença entre classes. Isso que foi dito no início... Esse posicionamento me veio agora, com uma simples lembrança de tempos longínquos. Me recordo que uma vez eu estava numa roda de músicos e que, nessa ocasião, avançadas as horas, um grupo de pessoas cantou uma música cuja letra, com o perdão dos termos chulos, dizia: “...todo mundo com o dedo enfiado no cu”. Era isso. E, rapidamente, do meio dos ouvintes um sujeito gritou: “menos eu, menos eu!” Pois é, vos digo, natureza desumana, caso seja, “menos eu, menos eu!"
Gilberto L.
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