Gilberto Libertino

O homem-cachorro



Devido a uma imagem aparentemente bizarra, que me tocou profundamente, acabei por acessar o site de sua origem, apontado por um amigo. Foi uma daquelas olhadelas internáuticas, noturno-vespertinas, no lusco-fusco, quando o dia anuncia acabar e, para evitarmos o incômodo de não ser nem noite nem tarde, procuramos uma distração. A imagem em questão era a de um homem-cachorro. Nesse site, primeiramente vi os anúncios de que o cachorro foi eutanasiado, seguindo os mais avançados e respeitosos procedimentos da cirurgia canina. Depois pude observar imagens da cirurgia em si, que consistia de algumas fotos colocadas em esquema sequencial, mostrando o passo a passo do transplante (de partes do cachorro morto ao ser humano interessado nessas partes; um artista, fazendo arte, literalmente, em duplo sentido). 

Deixando de lado a discussão se ele, o homem-cachorro, deve ser louco ou ser preso, como apontava meu amigo, os comentários contidos no site revelaram coisas tão bizarras quanto a própria cirurgia que se apresenta aos expectadores. É impressionante, por exemplo, a quantidade de comentários homofóbicos, do tipo que associa “ser bizarro” a “ser viado”. Impressiona também a quantidade de violência que as pessoas adotariam caso encontrassem o canino-homem nas ruas. Curioso que, nesse caso, as atrocidades cotidianas aos animais não são questionadas, apenas a do homem cachorro, que, por sua vez, são recebidas com tamanha violência. Minhas senhoras, ressalto as ameaças de morte a ele referidas, e até a proposta de implante de um pênis em seu ânus. Fosse a foto de um vaqueiro com uma cabeça de boi substituindo a sua dentro de um curral, soaria como algo trivial. Comer vinte corações de frango num espeto só (daqueles que se vendem nas esquinas), igualmente, é pouco questionado.

No caso de nosso homem cachorro, a arte não está precisamente na imagem do canino-humano em si, mas no efeito que ela causa nas pessoas. De repulsa? Não é só isso... No caso, a imagem revelou (algo expresso pelos comentários) muita, muitíssima, incompreensão, raiva, atitudes naturalizadas em nossa sociedade (tão bizarras quanto o transplante em questão, embora bizarrice seja algo bem relativo), a exemplo do espetinho de frango que me veio à mente. Trata-se, minhas senhoras, da mesma incompreensão que ocorre cotidianamente às minorias, aos índios, aos gays (muito longe de estes últimos constituírem minorias). Não quero com isso dizer que o artista-cachorro é um incompreendido, mas, sobretudo, atestar que há muita gente por aí portando incompreensão, mordendo a própria língua e dando tiro no pé a torto à direita.

Do ponto de vista artístico, minhas senhoras, o artista-cachorro foi brilhante, tomando como premissa de que sua arte foi minuciosamente pensada. E se pensar minuciosamente o caracteriza como psicobizarropata, então, nesse sentido, ele o é. Sua imagem cachorrobizarropata nos leva a refletir sobre questões de bem-estar animal, naturalização da dor e do uso da imagem alheia (no caso dos animais, mas seria fácil extrapolar para os humanos), incompreensões múltiplas, exclusão de minorias, violência contida, etc. Que síntese! Por que um ser humano pode quebrar a cara de outro por ele ter pego as orelhinhas de um cachorro eutanasiado e tê-las amarrado junto à sua? Não esqueçamos, isso ocorre com os ratos, aos montes nos laboratórios. Essa seria uma prerrogativa da ciência? Por que o transplante do homem-cachorro poderia justificar que outro ser o amarre em uma camisa de força e o embriague de remédios? Há mesmo muita diferença entre o canino-louco e a leitoa à pururuca servida com uma maça na boca no almoço de domingo? Humilhar publicamente o homem cachorro, como aconteceu com as publicações dos comentários a seu respeito, é o mesmo que dizer, ora pois, "o fétido almoço herege de domingo servido à luz de diabinhos retardados que correm ao redor do tabuleiro de madeira". Linchemos os hediondos que usurpam a liberdade de cavalos (refiro-me àqueles de quatro patas mesmo) por muitos anos e os soltam quando velhos para padecerem de fome e solidão nas ruas? Seria essa a vontade das senhoras que estão aqui a ler supostos devaneios?

Percebam, senhoras, que nosso artista-cachorro, louco-bizarro, viado-sem-noção, foi brilhante, certeiro! Há quem diga que ele chegou a ganhar simpatia com aquele focinho avantajado, esquartejado. Foi uma fantasia canina que mostrou às pessoas quem elas são, sem acusá-las, como um espelho o faz tão duramente aos balzaquianos.

Gilberto L.

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Especial Liniers


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Gilberto L.

the busy bee has no time for sorrow [william blake]

a
deixa que o peito comunique ao mundo todas as misérias, caso contrário o arroio esconso de teus
ossos será para sempre devastado.
baleias são um mar de sangue irresoluto.
libélulas são escamas de dragões.
o oceano desperta magmas ressentidos
o espaço acalma asteróides afoitos.
as estrelas são a sabedoria do espaço.
o sol é a sua soberba.
a lua, libido e ascese.
cometa é uma pesada e lenta pedra de luz vagando em estado bruto.
a morte mais reúne do que aparta.
o orgulhoso se antecipa em discursos prodigiosos.
o humilde não entende os aplausos.
escolhe morrer de noite e não haverá espanto.
sombra é um legado vegetal.
um tanque de guerra de nuvem não consegue desviar de crianças.
o cortejo das formigas vai por dentro das veias das árvores.
as nuvens se ligam aos céus por cordões umbilicais da infância.
o chão não desperdiça seus mortos.
a terra sobre os olhos dos mortos não se magoa.
as raízes mais fundas nos reconduzem ao dia.
a voz é um ruído domado.
a música é uma sombra da eternidade.

Paulo Vieira

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A dita cuja: várias maneiras de encará-la?


A violência... penso nela há dias. Minto, há semanas inteiras... Meses?, só o teto de minha residência ousaria. Mas é recente o meu melhor esclarecimento acerca dela. Dela, digo, da violência, doravante “dita cuja”. Digo mais, foi há pouco que me caiu a ficha sobre ela. Isso porque eu já percebia algo sobre a dita cuja, mas... Sabeis quando sabemos de algo, conceitualmente falando, mas dada hora cai a ficha, e neste exato momento nos descobrimos não sabedores? Foi isso, eu já sabia e agora sei e sinto, como dois e dois são, de fato, quatro.

Ah leitoras, vós desculpai-me, eu minto. Sabeis, a ficha não caiu não, sequer dois mais dois me parecem quatro. A única coisa que sucedeu foi que, agora, honestamente, desconfio de algo sobre a dita cuja, mas desconfio através de minha morena pele, morena jambu. Porque este último é verde, e esta é a cor do estremecimento.

A dita cuja a que me refiro é aquela fruto da distância, da falta de relação entre os humanos, ou, em palavras bem específicas, essa de alguns coagirem outros para obterem benefícios materiais, por meio do uso astuto e aguçado da psicologia. Quero explicitar melhor, e deixar claro que estou remetendo àquela dita cuja corriqueira, da TV, do rádio, do jornal, dos clichês do corredor. “Ai, esse mundo tá uma loucura, um perigo minha filha”. “Por las calles, ojos abiertos amigo”(em Buenos Aires). “As ruas estão um perigo”. Vós entendestes...

Feita a devida referência à dita cuja, por sua vez tida como o mal dos nossos tempos, e, quem sabe, de todos desde a presença humana na bola basáltica, gostaria de mergulhar no entendimento da minha desconfiança sobre ela. Hoje conversei com um senhor, a quem não quero fazer referências de nome ou sobrenome. Considerai penas um senhor. Classe média alta, 70 anos, ex-funcionário público, residente da minha atual cidade, o Rio de Janeiro. Conversávamos sobre a dita cuja, na forma mais tradicional que se possa imaginar. Dizíamos que tudo anda muito perigoso, que existem ladrões localizáveis por todas as partes, que a polícia não age, que tal pessoa fora roubada, que outra tivera o vidro do carro estourado, e assim por diante...

Sua esposa, muito temerosa com a dita cuja, manifestava sempre os benefícios da precaução, como colocar grades nas portas, etc. Precaução, aliás, inerente às mulheres em geral. Para o referido senhor, por outro lado, solução eficiente contra a dita cuja seria pegar os ladrões e puni-los rigorosamente. Relatou-me, com entusiasmo, casos de delegados que colocaram ordem em cidades pequenas, mas anteriormente violentas, fazendo os bandidos “desaparecerem”. Acho que vós sabeis ao que ele se referia. Ele, o senhor, sugeria que, para a paz nas cidades, era necessário rigor. Rigor mortis mesmo, nu e cru: cruz credo. Vós sabeis que esse posicionamento não é efêmero, tampouco isolado. Ele é comum, institucionalmente em declínio, mas comum. Comunzézimo, convenhamos! Se vós sois alienados, com o direito que a vós cabeis, fica aqui o meu pedido de peidão; desculpai, de “perdão”.

Minha pretensão em argumentar contrariamente ao referido senhor de modo virtuoso e arrogante é ínfima, saibam, afinal quem vos escreve é um ser simples, pensante, mas limitado. A ideia é apenas recolocar mais ou menos o que já foi colocado: o efeito da dita cuja sobre o nosso ser é também fruto da distância. De volta à história que eu vos contava, me recordo que a senhora, a esposa daquele senhor, e o próprio senhor, diziam que não saíam de casa, que pouco interagiam fora da residência. E isso é fato pois, os conheço pessoalmente há muitos anos. Só não conto mais de vinte pois me faltam dedos. Ambos mantêm distância das relações cotidianas exteriores, ambos são, visivelmente, aflitos com a dita cuja.

Percebo, não de modo inédito, que a ocorrência da dita cuja, na forma corriqueira que eu aqui propus, faz com que as interações se evaporem..., ou seja, quanto mais dita cuja, menos interação e, quanto menos interação, mais dita cuja. É uma bola de neve, alimentada pelos traumas do cotidiano, não? Percebeis? Tento traçar uma relação desse fato com a minha atual condição de medo enquanto estou presente no espaço urbano, muito embora eu seja bastante diferente daquele aflito casal. Mas meu medo é decorrente de motivos mesmos que os da maioria dos cidadãos, ou seja, de coações inesperadas seguidas de ausência súbita de bens materiais portáteis e sensação imediata de falta de dignidade: assaltos, roubos e derivados...

Reflito momentaneamente e me pergunto: dadas as configurações da atualidade, seria viável seguir um caminho de interação igualitária (gerando benefícios mútuos) com outros segmentos da sociedade para sentir menos medo no mundo atual? O motivo da pergunta é justamente pela desconfiança de que, uma vez estabelecido que a frequência dos referidos eventos de coação não se alterará tão rapidamente no nosso plano, a aproximação entre pessoas dos “dois segmentos” (digamos assim apenas por hora), ou seja, de representantes dos que nos parecem “coatores” e dos “coagidos”, não seria capaz de minimizar a sensação da dita cuja por parte dos coagidos?

Alguém de vós, digníssimas leitoras, poderia me dizer energicamente “coatores uma ova, estes que dizes coatores são os verdadeiramente coagidos, ó senhor” e a mim restaria calar-me ou concordar, considerando a possibilidade de colocação de um ponto de vista irrefutável: o de que os nomes coatores e coagidos só poderiam fazer sentido na perspectiva dos que tem mais a perder, materialmente falando e, mesmo assim, não admitindo generalizações. Mas digo assim só por hora, mesmo sustentando ainda uma sensação de imprecisão. Mas, creio, não é exclusivamente a questão material que está em jogo. Em jogo está a polarização, um sistema exploratório, modos de vida, valores, possibilidades, acessos, etc.

O que tenho dito até aqui, digníssimas, parece algo um pouco óbvio, de modo que o que impera é a questão de o que se fazer diante do medo, da distância e de tudo isso. Afinal, gostaríeis vós de permanecer com a dupla sensação de, por um lado, perceber tudo isso e, por outro, nada pensar ou fazer para reverter? Ainda que seja do ponto de vista egoísta: para vos sentirdes mais amparadas.

Ando pensando que a sensação de medo pode se esvair (ou ser amenizada) a partir do momento em que nos sentimos no direito de não senti-la. Mas como nos imbuirmos desse direito se não fazemos absolutamente nada para amenizar as diferenças material, cultural e intelectual que existem entre as pessoas? E, lógico senhoras, o direito de que tratamos não é o direito legal (esse, em papel, já nos é garantido), mas o direito psicológico atualizado na realidade em que vivemos.

Nos tornarmos um pouco do outro, gerar uma sensação de pertencimento ao grupo dos que nos parecem coatores, prover de solidariedade a relação com este grupo e conquistar sua solidariedade vêm a minha mente como caminhos para o combate ao medo. Vejais senhoras, a solidariedade tem que ser recíproca, não? A aceitação tem que ser mútua? Sim. E se o for, então não estaríamos tratando de um mero processo de doação, mas de interação seguida de conquista, o que exige condições mais igualitárias.

Pois então ilustres senhoras, termino aqui os meus dizeres, com parcimônia e declarando a intenção de experimentar as minhas observações. Se minhas sensações avançarem para a posição que eu aqui, humildemente, defendo, torno-lhes a escrever o Capítulo II. E se vós achardes que eu observei em uma direção sensata, ó senhoras, e que pensais mesmo que há várias maneiras de encarar os efeitos da dita cuja, então praticai e adiante trocamos nossas figurinhas.

Gilberto L.

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O indireto afetivo na liguagem do carioca


No Rio de Janeiro contemporâneo há uma figura lingüístico-afetiva que pontua as relações sociais entre cariocas, ou entre um carioca e um estrangeiro. Trata-se – e todo carioca ou qualquer pessoa que já esteve no Rio o reconhecerá – do famigerado diálogo:

— Rapaz, há quanto tempo!
— Pois é, que bom te ver!
— Poxa, a gente tinha que se falar mais!
— É mesmo, vou te ligar.
— Mas liga mesmo, pra gente se ver, botar o papo em dia.
— Não, pode deixar, vou ligar com certeza.
— Beleza, então. Adorei te ver!
— Eu também, te ligo então. Um grande abraço!

Isso ou variações.

Pois para muitos cariocas, que já estão mais do que familiarizados com o diálogo, e talvez sobretudo para os não-cariocas, que constataram perplexos o encaminhamento futuro dessas promessas, essa figura lingüística acaba por se configurar como uma situação de constrangimento. Afinal, todos sabemos que não haverá telefonema algum. Todos, literalmente, a começar pelos próprios personagens da conversa. E a fórmula do constrangimento, já se disse, é precisamente esta: todos sabem que todos sabem e entretanto ninguém o pode admitir. Curiosas sutilezas sociais. O que impede que se desencubra o não-dito do diálogo é que esse não-dito é sentido como uma mentira: não haverá telefonema, um não ligará para o outro, e vice-versa. Assim, o não-dito é mantido e desenvolvido, cria-se uma conversa sustentando a sua tensão. Está configurada a situação constrangedora.

Mas o que faz com que a situação seja por muitos experimentada como constrangedora é justamente o entendimento desse não-dito, dessa promessa que sabemos sem fundos ("te ligo, com certeza"), como sendo uma mentira. Fulano disse que ia ligar, mas não ligou: mentira, portanto. Pior: fulano assegurou que ia ligar, enfatizou, sublinhou a promessa com todas as inflexões e entonações da convicção. Mentira ainda mais grave, gravíssima.

Entretanto, tudo muda se pensarmos o recalcado do diálogo, o não-dito, não como uma mentira, mas como um modo indireto da verdade. Assim, o horizonte em que a promessa passa a ser verdadeira não é mais a sua efetivação posterior, mas o que, dentro dela, vibra afetivamente: "te ligo" passa a significar "gosto de você", "vou ligar com certeza" traduz-se por "gosto muito de você", e assim por diante, a intensidade afetiva aumentando à proporção das entonações e expressões de segurança. Fernando Pessoa dizia que "a linguagem pode mentir, mas a voz não". Ora, nesse fragmento de carioquês a verdade está na voz, no afeto que nela pulsa e se manifesta explicitamente. Mas, cabe então a pergunta: por que engajar esse afeto em uma promessa sem fundos, que se sabe não será cumprida? Por que comprometer sua verdade associando-o a uma efetivação que não ocorrerá?

A origem dessa curiosa figura sócio-lingüístico-afetiva é uma outra figura: uma sutil transformação da amizade que costuma se dar numa das curvas impostas pelo tempo a determinadas relações. Essa transformação ocorre quando uma amizade intensa passa de um estado de intimidade diariamente atualizada – conversas freqüentes, presença física constante, confissões, vidas em permanente comunicação – para um estado de amizade em que a distância se interpõe e dispersa as trajetórias dos amigos, porém algo da intimidade da outra configuração resiste a essa nova forma e se mantém intenso, incólume à distância. Esse "algo da intimidade" se transforma em um afeto constante que, adormecido e escondido pela distância, emerge efusivamente na presença do amigo. Afeto a distância. Quase-intimidade que se evidencia, para deleite dos amigos, a cada vez que o acaso propicia um encontro. Mas, em geral, os movimentos divergentes das trajetórias de vida são irreversíveis, na medida em que atingem o processo de subjetivação de cada um dos amigos: estes já não são mais os mesmos, pensam e sentem de forma diferente, são outros, não podem ter a cumplicidade que tinham antes, não da mesma forma. O que resiste, o afeto, é resultado de uma intimidade de tal modo condensada que, por excesso, atingiu como que uma existência própria, interpessoal, portanto imune às mudanças de vida dos amigos.

Perde-se a intimidade, já não se sabe tão bem da vida do outro, mas fica, incorruptível, o afeto, que vem à tona nos encontros fortuitos. Pois, justamente, é essa consciência (que pode ser apenas intuída, porém claramente) da perda irreversível da intimidade, da impossível recuperação da amizade, que virá a produzir o diálogo de que estamos tratando. O afeto é verdadeiro, é uma positividade, mas há em sua formação uma perda, uma impossibilidade: a da intimidade perdida. Isto é, telefonar seria um erro, seria apostar na improvável recuperação do estado antigo da amizade. Doravante a amizade é isso: o afeto efusivo, a alegria dos encontros fortuitos – que entretanto tenderia a perder a efusão se se tentasse um movimento restaurador. O recalcado do diálogo, o não-dito, se forma nesse ponto: é que seria duro demais trazer à tona o núcleo de perda e de impossibilidade que se encontra na formação de um afeto tão positivo, tão efusivamente manifestado. Opta-se por escondê-lo, e para tanto faz-se necessário mascará-lo com a promessa da restauração: "Vou te ligar." Quanto maior a consciência ou a intuição — da impossibilidade, e de quanta perda ela encerra, maior a necessidade de mascaramento: "Vou te ligar, com certeza."

Assim, curiosamente, quanto maior a mentira, maior a verdade. A verdade do afeto não se subordina à efetivação da promessa, mas se manifesta, de forma indireta, através do prometido: "Vou te ligar, com certeza" significa apenas "Gosto muito de você". O não cumprimento da promessa significa a consciência (mesmo que intuitiva) da impossibilidade de restauração da amizade, e o recalcado do diálogo é o mascaramento protetor de um afeto delicado. Pois a verdade nua e crua, desprotegida, poderia ser muito... constrangedora: "Rapaz, há quanto tempo! Veja, gosto de você, fomos muito íntimos, mas hoje somos bem diferentes, não acredito que possamos retomar a antiga cumplicidade, por isso vamos apenas gozar desse momento de alegria fortuita, sem fazer promessas que não poderemos cumprir." Logo o constrangimento também surge de um excesso de dizer, e não apenas de um não-dito gritante. Na verdade, nosso famigerado diálogo carioca só se torna constrangedor se sua verdade nuclear – o afeto incorruptível – não for forte o suficiente para sustentar, à base de cumplicidade, a tensão do mascaramento. Quando o mascaramento é bem-feito, o diálogo transcorre sob intensa e efêmera efusão afetiva – e somente na despedida passa por nós a brisa de uma melancolia.

Francisco Bosco
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"Menos eu"


Eu e você achamos que diferenças de classe existem, muita gente acha. Entendo que muitos sustentem o contrário, mas eu sou desses que acha. Você não? Diferentes capacidades de comprar, de se locomover, de se comunicar, de aprender, de desfrutar... Lógico, as diferenças não são sempre iguais, ou homogêneas, mas elas existem. Suponho que tenham surgido de diferenças econômicas que outrora se estabeleceram, em um ciclo vicioso infernal. E da nossa natureza [des]humana também. Infernal porque, para dele se conseguir sair, é fundamental vender a alma ao diabo, quando não o corpo aos homens. Mas escrevo porque, uma vez havendo a famigerada diferença e, assim, existindo o “grupo dos de cima” e o “grupo dos de [re]baixo”, a qual destes seria melhor pertencer? Fico pensando... digamos que uma classe tal, de Fulanos, possa comprar mais que uma outra classe, de Beltranos. E que os Fulanos tenham mais platas, more monney, maior mobilidade diante das incertitudes da vida, mais conforto. Assumamos isto por enquanto, desconsiderando as imperfeições que porventura estejam aí imbricadas. Já a dos Beltranos, essa teria mais audácia, mais necessária-criatividade, menos aporrinhação mental – afinal não necessita manter o domínio da outra classe. Ficcionemos... As duas transitam, com diferentes passos e velocidades, ambas se entrelaçam e dependem uma da outra. Penso se isso seria um paradoxo: “sugar” a vida do que o sustenta. Um comensalismo? Um parasitismo? Nessa divagação, fico imaginando que, uma vez os Beltranos sendo conscientes de suas maiores capacidades (de platas), se assim o for, nessa sapiência-consciência reside um enorme constrangimento por parte dos Fulanos. Os Fulanos são mais ricos e os Beltranos mais pobres, e ambos têm consciência de suas posses e possibilidades e que, mais ainda, têm consciência dessas mesmas posses e possibilidades alheias, e mais, consciência da reciprocidade dessa consciência. Concluo que aí reside um forte constrangimento! Não acham? Ele existe para você? Querem um exemplo? Imaginem, Senhor Barriga vai ao supermercado, compra coisas que o Chaves – que, sendo o caixa, convenhamos, nunca fora chamado de Senhor Chaves – jamais pudera comprar, ambos sabem disso, quem fica constrangido? Senhor Barriga! O magnânimo caixa, o Chaves, de pseudo simpatia, de pseudo sorriso, de pseudo troco certo (ah, Senhor Barriga estava atento!), registra as compras com sua pseudo vontade e verdadeira agilidade... Seu Barriga? Confere a nota e o troco com o pseudo ar de que qualquer troco a menos o faria falta, de que as coisas andam caras e de que aquele é um momento único, já que, pseudo tendo pouca grana, há de pseudo sofrer com a referida compra. Mas Seu Barriga, nem tão no fundo assim, sabe que o Chaves sabe... que ele sabe de tudo, e que ele sabe que ele sabe que ele sabe! E na hora de erguer os braços para pegar as compras, e já desde a hora de passar o cartão e digitar a senha, recai inevitavelmente sobre Seu Barriga uma sensação aterradora, e ao mesmo tempo inacreditavelmente sutil: o constrangimento, opaco, da fila do supermercado. E da fila do açougue, e da fila da loja, e da fila do guichê para pagar o estacionamento, e das inúmeras filas. E Chaves, que quando adquirira o emprego, no início, ficara sempre constrangido – assim, de saber que era pobrezinho diante daqueles consumidores – agora não o fica mais. Lógico, esse não é o caso do Senhor Barriga. Entendem? Pergunto, seria este constrangimento o castigo para os Fulanos que pensam não ter que se preocupar com a questão social? Ou seria um castigo, maior ainda, para os Fulanos que se preocupam com a questão? Aí o castigo seria o martírio, agonizando sempre, sempre. Não sei, mas sei que constrangidos ficam todos esses Fulanos, e que esses, a maioria desses, não consegue uma relação mano a mano com os Beltranos. Consegue, a maioria? No, no. Bem, disse que escrevia para tentar esclarecer a dúvida sobre a qual grupo seria melhor pertencer, dado o factual constrangimento. Mas, subitamente, estou convencido de que não trarei resposta ou avanço algum. Você sim? Mas, glória, em compensação me surgiu uma posição, muito pessoal, sobre a possibilidade da própria natureza desumana dos homens ser uma das causadoras da diferença entre classes. Isso que foi dito no início... Esse posicionamento me veio agora, com uma simples lembrança de tempos longínquos. Me recordo que uma vez eu estava numa roda de músicos e que, nessa ocasião, avançadas as horas, um grupo de pessoas cantou uma música cuja letra, com o perdão dos termos chulos, dizia: “...todo mundo com o dedo enfiado no cu”. Era isso. E, rapidamente, do meio dos ouvintes um sujeito gritou: “menos eu, menos eu!” Pois é, vos digo, natureza desumana, caso seja, “menos eu, menos eu!"

Gilberto L.

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Oração para as pernas de Neruda


Ó desveladas pernas, que tão longe
Carregastes o poeta em sua fuga
Eu vos mirei, enormes e largadas
E roxas da gangrena subjacente.
Ó não as amputeis, homens de branco
Que rondais essas pernas apreensivos
Enquanto o poeta, pálido e prostrado
Lê "Canto general" para os amigos.
Que se não verifiquem os maus presságios
Que volte o sangue a circular nas pernas
E o poeta se erga, majestoso e mágico
E beba em meio a alegres mariaches
Cantando alto e bom som canções eternas
 Nos caminhos sem fim da liberdade


Vinicius de Moraes

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A roda da praça


Certa vez fui à Praça da República, em Belém, para ver o que acontecia lá. Depois de muitas voltas pelas barraquinhas, acabei por parar em uma roda muito animada que me chamou a atenção. Energizada acho que era a palavra mais certa que animada. What ever... Meus olhos foram de súbito atraídos por uma tocadora de chocalhos, que tocava em contratempo, como que em transe. Ao centro da roda, um guri, que de tão maliciosamente dançava cortejando lá uma mulher, de guri pouco se lembrava. Ao fundo, além dos muitos, duas adolescentes com seus óculos maneiros, bem representavam o grupo das patricinhas. Aliás, o que tinha de representantes, só vendo e crendo. Mas a roda, cheia por fora, vazia por dentro naquele momento estava, aconchegando poucas timidezes. É isso mesmo timidezes: porque pra entrar na roda tem que ser tímido. E aí foi chegando um número maior de tímidos, à medida que a música com seus tambores, chocalhos e vozes ia apetecendo. A respeito, era Carimbó, e outras, vamos ver. Dos flertes de súbito percebi um surreal no miolo daquela roda; mucho loca como diriam meus sucessores. Não dei conta de tantas informações. Uma índia, com cara de índia, já meio senhora acertava os passos. Sua veste era intrigante: uma calça jeans da cintura a abaixo da púbis, cortada. De aí para baixo formava-se uma saia de belos retalhos. Na testa tinha um arco, de pedras e sementes que, com seus cabelos longos e rosto marcante lembravam a She-ra, a princesa do poder. Lembram dela? A irmã do He-man. Pois é, não consegui poupá-los de minha herança geracional. Mas, adiante... Para acompanhá-la entrou lá naquele miolo um homem, de idade semelhante, bermuda de surfista, tênis, meia, meio desengonçado. Mas combinaram, achei. Duas senhoras não puderam se conter, no sentido estrito da palavra, e adentraram à roda. Uma delas era assaz gorda; tirou as sandálias às pressas e tinha as unhas pintadas de vermelho, sufocadas pela gordura dos pés. Exprimia na face um prazer intenso que espremia seu suor. A outra senhora parecia uma crente, acho que viera da igreja à praça, mas não posso afirmar. Vestia uma camisa azul, de gola também azul listrada de branco, enfiada adentro de uma saia de branco impecável. Ao braço carregava uma bolsa preta, envernizada, que balançava em compasso rígido. E a música esquentava com o fogo destas incontinências, alimentado pelos semblantes tímidos e ousados dos que se propunham a dançar. “André, me sinto o máximo a cada dia que sou como você”. Essa era uma frase tatuada nas costas de uma jovem e bonita mulher, bem torneada, de gengiva protuberante. Outra feliz incontida. Ela estava sempre cortejada por um rapaz, também jovem, magro, forte e de olhar sugestivo. Na roda ele e ela eram os maiores, digo, os mais altos. Eram os mais brancos e faziam o cerimonial: eram o príncipe e a princesa eleitos, sem que se possa usar suas matizes de pele como ironia social. Na periferia disso tudo, atentos observadores, batedores de palmas, assobiadores e cantores se entreolhavam. Ah, e os músicos. Havia de todos os tipos e todos os lugares, liderados por um rasta de cabelos nas coxas, muito imponente. Ensaiados, mas diversos. De tão diversos, parece, sua ação e frenesi eram motivados pelos incontidos, pelos diversos incontidos. Chegaram duas bailarininhas que haviam se apresentado num palco perto dali. Também não se contiveram. Chegou um flautista, trêmulo e tímido, começou a tocar no microfone. Nada no início se ouvia, a não ser seu desconforto. Um cantor, carismático, com cara de cearense fez a ele o cerimonial necessário. Arranjou outro microfone, cantou junto, pediu ao coro para cantar a mesma melodia. E aí foi, o flautista se fez em êxtase. Todos se fizeram. A gorda, a crente, as bailarinas, os príncipes, o adolescente magro, o guri cortejador, o desengonçado, os descolados e muitos outros. E sendo muitos, assim tão variados, não podiam dançar uma coisa só. Dançaram carimbó, lundu, boi, tambor. Carimbó com matraca, boi com flauta, tambor com tudo. E o alimento era a timidez e o reflexo inevitável dos tambores que batiam. Horas a fio...

Gilberto L.

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Cidade pará-doxo


Paradoxo é clichê? Clichesão? Mas não é à toa. Paradoxos constituem as nossas vidas e talvez seja por isso que se diga outro conhecido clichê: o homem é um ser contraditório. A cidade onde vivo é assim também, paradoxal, e as demais, do porvir, assim serão? Quiçá! Fico na dúvida de como começar a falar da minha cidade. Ela é conhecida, como muitas outras de nosso gigante Brasil, pelas deficiências no serviço público. É, é isso mesmo, eu já dei ao entender que estava falando de clichês, oras. Mas voltemos à minha cidade... Fazendo um recorte temporal, do dia de hoje, pode-se provar uma mostra dessas deficiências. Hoje, na câmara legislativa, discute-se a privatização dos serviços de abastecimento de água. Privatizá-los, aqui, ao contrário do que se imagine, tem grande apelo popular, sob o comprovado argumento de que o poder público local é incapaz de garanti-lo. Será? Veremos... O fato é que vários bairros não recebem água todos os dias. Água à noite, nem pensar. Água pela manhã, no entanto, é garantida em vários bairros, particularmente naqueles lares de moradores mais desmemoriados, que esquecem as torneiras abertas desde a noite anterior. Assim é. Você está em casa, à noite, lavando louça, a água acaba, você para de lavar, esquece a torneira aberta, às seis da manhã ela volta, você acorda: um lago. Dura realidade. Mas deixemos a água de lado e sigamos adiante no dito recorte. Hoje é sexta-feira, e ainda noticia-se, em rede local e nacional, o fato marcante do último feriado. Foi a ausência de médicos nos hospitais públicos durante o feriado de finados. Calamitoso o fato ocorrido de que as pessoas que chegavam tinham que voltar, independente do tipo de problema – de febre a crânio rachado. Devo dizer, vou me ater apenas ao recorte temporal. Assim, uma mulher presa em jaula masculina por 15 dias, como aconteceu há alguns meses, sugere muitas coisas, mas não pertence a este recorte. Mas, um conjunto de hospitais sem médicos no final de semana confirma – e não apenas sugere – a falência de um setor. É mais amplo, e é aí onde eu queria chegar cara leitora. Estou tentando colocar, neste recorte, evidências de várias falências. Pancadarias na câmara legislativa pela privatização do abastecimento são evidências desse mesmo tipo. Não? Adiante. Ontem fui dar uma volta no bosque e fiquei transtornado no momento em que vi aparelhos de ginástica absurdamente lotados. O que isso significa? Significa que, desde que foram instalados, há seis dias, foram percebidos de imediato, sem nenhuma divulgação. Mas o mais embaixo do buraco é que as pessoas estão sedentas de espaços e de lazer diferentes. Aqui, acredite, praticamente não existem parques, e as praças que há estão sempre causticamente lotadas. Adiante. Ônibus na cidade onde vivo há muitos: todos sujos, mal conservados, velhos. É comum os motoristas não pararem quando são solicitados. Hoje está acontecendo isso, vejo da minha janela. Oras, então está no recorte, não está? Comum também é ter que pegar apenas o terceiro ônibus, pois os dois primeiros não pararam. Mulher gostosa, com o perdão da palavra, [i]lógico, não é afetada. A impressão que fica é que existe uma autogestão do sistema como um todo e nele participam apenas os usuários e as empresas. Imaginou no que dá? Saiu na revista da semana, li hoje, os sem terra do MST invadiram uma fazenda próxima a Marabá e demoliram todas as construções lá presentes. Que isso quer dizer? Que mais uma vez esses pilantras marginais fazem sua bagunça ameaçadora? Não, que as propagandas enganosas continuam regendo a opinião pública. Nem investiguei se é mentira, mas é tudo bem semelhante às inúmeras ocasiões que investiguei e que era. Logo, tomemos como mentira. Trata-se de algo representativo? Responda a você mesmo. Ainda estou fiel ao meu recorte temporal: só vale o que burbura hoje. Não vou falar do prefeito com seu falso diploma, nem da governadora com seu programa de 1 bilhão de [mentiras]árvores, nem da polícia absolutamente corrupta, nem da educação paupérrima, nem do trânsito. Estas coisas aqui não estão em questão. Só vale o de hoje mesmo, o que eu posso ver. Bom, chega de denúncias, pois o que busco é o paradoxo e, para ser paradoxo tem que contrastar, não é isso? E é aí que reside o desafio. Já pensaram nisso? É aí que reside o desafio... Ponham-se no meu lugar. Viu? Paradoxo é assim fácil falar, eita clichesão arretado, vai explicar... E eu queria, era dizer do paradoxo. Como pode, como pode, deste contexto, emergirem coisas, assim, tão belas? E elas resistirem e continuarem [re]existindo. Pronto, lá vem o cara em busca de senso poético que justifique toda a merda colocada. Mas é isso, o contraste está em questão! Deste caos emergem cultura, sutilezas, tradições, posturas, modos de encarar o próprio caos. Estes, juntos, constituem os passos de uma dança, que é bela, sublime aos mais atentos. Seriam os passos do Heavy metal do senhor? Neste contraste pergunto: como pode tantos poetas e escritores conseguirem manter seu fôlego; como podem ainda manterem-se indignados, por tanto tempo? Como pode, em meio de tanta dominação de forças hegemônicas, existir um canal de TV tão diverso, regional e, acreditem, imparcial? Lógico, tantos belos passos, tanta beleza, mantém-se escorada em uma carapaça incessantemente autoprotetora, autovalorizadora. Seria a carapaça da ilusão? Talvez, mas uma ilusão constituinte, que garante a sobrevivência, logo, necessária. Pois, então... Como pode tanto chôro, carimbó e marujada? Isso é mais um clichê, você pode dizer, mas o mesmo poderia ser dito sobre os ensaios das quadrilhas noite adentro? É, saibam, esses ensaios ocupam ruas e ruas nas madrugadas de maio. Vou pular o clichesão do Círio de Nazaré, mas pergunto a vocês, o que faz haver uma programação de rádio tão boa? E artistas tão engajados? Que é que faz, diante do caos, pessoas cozinharem tão refinadamente, escolhendo os melhores temperos, daqueles de fazer virar os olhinhos? Pois é, vejo, não sei se vês companheira, uma lagartixa que, jogada no ácido, não sem dor, ensaia seu extasiante nado sincronizado. É paradoxo ou não? Ô horinha pra ensaiar...

Gilberto L.
 
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